terça-feira, 19 de julho de 2011

Republicanismo e República XVI

O pós–sidonismo e a conjura monárquica

Morto Sidónio Pais, o sidonismo começou de imediato a morrer. A assunção, por parte do Governo, do pleno exercício dos poderes executivos e a eleição de um novo presidente da República foram actos realizados nos termos da Constituição de 1911, então reposta em vigor. Com isso se fazia letra morta dos rudimentos constitucionais sidonistas, ao abrigo dos quais fora constituído o Congresso da República (reunião da duas câmaras do Parlamento – deputados e senadores), ao qual, todavia, não tinham sido atribuídos poderes electivos. E no entanto foi este órgão que, a 16 de Dezembro de 1918, elegeu para a presidência da República o vice-almirante João do Canto e Castro Silva Antunes, um monárquico que desempenhava o cargo de Secretário de Estado da Marinha, desde Outubro desse ano.

O novo Chefe de Estado encarregou o anterior Secretário de Estado das Finanças, tenente-coronel João Tamagnini da Silva Barbosa, de formar governo. Este assim o fez, recorrendo, em boa parte, a elementos do anterior ministério. De acordo com disposições governamentais então tomadas, ficavam também repostas as figuras institucionais do presidente de ministério, bem assim como dos ministros (recorde-se que em tempo de Sidónio Pais os ministros haviam passado a secretários de Estado).

Neste ínterim, agitavam-se, porém, os militares, organizados primeiramente nos chamados Núcleos de Guarnição e depois nas proclamadas Juntas Militares. Os Núcleos tinham surgido, ainda em tempo de Sidónio Pais, como mais uma consequência da sua desatinada política de se rodear de monárquicos, provendo com estes as chefias e os mais altos e estratégicos cargos do sector militar. O resultado foi o aparecimento dum exército fortemente politizado e extremado em duas facções principais: de um lado uma oficialidade monarcófila que se havia mostrado fortemente antiguerrista e que temia o avanço dos democráticos (a quem apelidavam de «seita demagógica») e o retorno a uma situação política igual ou parecida com a que se vivera antes da revolução dezembrista; do outro lado, oficiais de fundadas convicções republicanas e que viam, com razão, nas acções e movimentações dos primeiros, o perigo de uma tentativa de restauração monárquica.

Na verdade, em articulação com alguns dirigentes monárquicos, mais ligados a Paiva Couceiro, o verdadeiro e superior objectivo das Juntas Militares era a restauração da monarquia em Portugal. Ao momento mostravam apenas os seus intentos de influir na situação política, intervindo nas composições governamentais ou promovendo a formação de um governo militar que «jugulasse de vez a fúria revolucionária» (“Proclamação da Junta Militar do Norte”, datada de 18/12/18, in Diário de Notícias de 21/12/18). Num primeiro ensaio de força e sob o pretexto de desconfiança política quanto a algumas personalidades governamentais como o médico Egas Moniz e o magistrado Afonso de Melo, os militares monárquicos fizeram sair de quartéis, na madrugada de 24 de Dezembro de 1918, os regimentos de cavalaria de Lisboa, acompanhados por elementos das baterias de Queluz e por alunos da Escola de Guerra. Sob o comando do general Jaime de Castro foram acampar no Parque Eduardo VII, de onde enviaram delegados seus a Belém para conferenciar com o Presidente Canto e Castro e com o Chefe de Governo, Tamagnini Barbosa. Da conferência resultou que continuaria em funções o Ministério de Tamagnini, tal como estava constituído, aguardando-se melhor oportunidade para introduzir alterações que, de alguma forma, satisfizessem as pretensões das Juntas Militares. Após estas conversações, os sublevados, sob uma chuva contínua que se fazia sentir, levantaram arraiais e retiraram para Queluz.

Para Canto e Castro e Tamagnini Barbosa que, a todo o transe, queriam evitar derramamentos de sangue, a retirada dos militares constituía uma pequena vitória, uma vez que não só não houvera confrontos, como ainda no difícil plano negocial haviam ganho tempo, não se obrigando, pelo menos no imediato, a dar resposta a qualquer das reivindicações das Juntas. De resto, o movimento golpista era condenado publicamente por muitos sectores e membros das Forças Armadas e pela quase totalidade da imprensa. De notar que junto da opinião pública, mormente da opinião pública lisboeta, as Juntas não gozavam de apoios, bem pelo contrário, eram vigorosamente verberadas. Todavia, ainda nessa manhã de 24 de Dezembro, os insurrectos fizeram chegar a Tamagnini Barbosa uma comunicação na qual colocavam uma série de condições para uma retirada definitiva para quartéis. Designadamente, pretendiam a queda do Ministério e a constituição de outro, integrando pessoas por si indicadas, e reclamavam a prerrogativa de serem eles, militares, a escolher os comandos para os corpos de tropas no país. Tamagnini de imediato taxou as reivindicações de inaceitáveis.

Desta forma, a guerra civil, opondo realistas a republicanos, avizinhava-se, perigosamente. Porém, na sequência de esforços mediados por Canto e Castro, o Governo e as Juntas chegaram, aparentemente, a um entendimento, à luz do qual se procedeu a uma recomposição ministerial que afeiçoava o Executivo um pouco mais às exigências dos monarquistas. Apresentado no Parlamento a 9 de Janeiro, o novo Governo mereceu críticas da parte dos vários grupos parlamentares, com excepção da minoria católica, sendo Tamagnini acusado de andar às ordens das Juntas. No Senado, também Machado Santos não se eximiu a proferir opiniões cáusticas quanto à actuação do Chefe do Executivo, chamando-lhe «comerciante de secos e molhados» (O Século de 10/1/19). Em todo o caso, o remodelado Governo não foi inviabilizado.

Contudo, as cedências feitas aos monárquicos das Juntas Militares tiveram o efeito de exaltar os ânimos dos republicanos. Não tardou muito para que essa exaltação desse lugar a uma revolta republicana com epicentro em Santarém e com focos de rebelião em Lisboa e na Covilhã. As tropas enviadas pelo Governo dominaram as insurreições em pouco tempo e sem dificuldades de maior, excepção feita para Santarém que continuava a resistir. Da cidade, o comandante das forças amotinadas, coronel Jaime de Figueiredo, enviou ao Presidente da República um telegrama, reconhecendo a sua autoridade de Chefe de Estado e justificando a revolta como um meio para libertar o país e os órgãos de soberania da coacção das Juntas Militares. No documento, propõe a organização de um governo «retintamente republicano» (O Século de 12/1/19). Decidido a não contemporizar, o Governo fez deslocar tropas de Lisboa e do Alentejo e de Coimbra, pondo cerco a Santarém. A estas tropas juntaram-se outras, vindas do norte, enviadas pela Junta Militar e comandadas pelo coronel Silva Ramos, acto que, decerto, obedeceu à dúplice intenção de, por um lado, combater os republicanos (inimigos de sempre) e, por outro lado, afirmar a existência da Junta como centro de poder, alternativo ao Governo. Também a famosa Coluna Negra (grupo armado com peças de artilharia e composto por guardas-fiscais, guardas-republicanos e soldados de uma companhia de obuses, arregimentados por Teófilo Duarte em Castelo Branco e na Guarda e que, sob o seu comando, dominaram os revoltosos da Covilhã. Agindo por conta própria, deambularão depois pelas Beiras, numa táctica de movimento nunca antes ensaiada em Portugal por tropas sublevadas) comandada por Teófilo Duarte, um dos cadetes de Sidónio, se pôs a caminho da cidade ribatejana. Cercados por efectivos poderosos e sujeitados a aturado fogo de artilharia, os sitiados, ao meio-dia de 15 de Janeiro de 1919, mostraram sinais de quererem negociar uma rendição e acabaram por depor as armas ao fim da tarde, não perante o comandante geral das forças militares atacantes, general Tamagnini de Abreu, mas ante a figura de Teófilo Duarte, que era apenas tenente. Na sua declaração de rendição, os revoltosos justificaram tão insólita atitude com o reconhecimento na pessoa de Teófilo Duarte da sua dignidade de Governador de Cabo-Verde (investido nesse cargo por Sidónio Pais), facto que o transformava no interlocutor mais importante. Não é difícil adivinhar-se outras motivações por parte dos revoltosos, designadamente a intenção de apoucarem o Governo, uma vez que em todo aquele contexto, Teófilo Duarte agira sempre por conta própria, não estando mandatado para quaisquer dos actos que cometera.

Esta aventura republicana, em si própria, e a benignidade com que os seus autores foram julgados pôs de sobreaviso os próceres das Juntas Militares. Suspeitavam, aliás com fundamento, de cumplicidades entre insurrectos e membros do Governo para a criação de um facto (a revolta) que se mostrasse como uma contraposição forte às actividades das Juntas Militares, com isso se visando a subvalorização do peso e influência destas no xadrez da política nacional. Certas afirmações produzidas mais tarde pelo deputado dezembrista, Cunha Leal, implicado no movimento, dão alguma consistência à suspeição das Juntas. Com efeito, Cunha Leal declarará na Câmara de Deputados que por amigos do Presidente do Ministério lhes foi dito, a eles, revoltosos, o seguinte: “Nós não temos forças para combater as Juntas Militares, mas revoltem-se vocês provando ao Governo que essa força existe, pois assim o Governo em lugar de os combater dar-lhes-á as mãos” (Diário da Câmara de Deputados de 11/02/1919 - grafia actualizada).

Adiante veremos que de toda esta complexa e turbulenta conjuntura resultarão consequências graves e dramáticas que não deixarão de pesar dos destinos da República e de Portugal.
Publicado por Fernando Fava