sexta-feira, 20 de agosto de 2010

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Memorial Republicano LVI

O Regicídio

A revolta de 28 de Janeiro de 1908 produziu em João Franco um efeito de fúria incontida. As determinações subsequentes traduziram o seu fundo psicológico instável e psicótico. Lisboa passou a ser vigiada por efectivos policiais que a tornavam terra sitiada e foram dadas ordens à cavalaria da Guarda Municipal para exibir todo o seu poder atemorizante. Os jornais que circulavam eram apenas os que se revelavam afectos à ditadura. Um enxame de informadores invadiu cafés, botequins e locais de convívio. O ditador convenceu-se que a viabilização da sua política requeria a rigorosa medida de expatriar os seus mais denodados opositores. Nesse sentido, João Franco preparou um decreto que permitiria “expulsar do Reino, ou fazer transportar para uma província ultramarina, aqueles que, uma vez reconhecidos culpados, [importasse] à segurança do Estado, à tranquilidade pública e aos interesses gerais da Nação”. A intenção do projectado texto legal foi conhecida pela opinião pública, sendo ele imediatamente designado por “decreto da proscrição” ou “do desterro”. Era uma verdadeira arma de extermínio sobre a qual Franco procurava fazer assentar a sua indisputável soberania política.

O Ministro da Justiça, Teixeira de Abreu, assumiu o encargo de partir para Vila Viçosa, onde então se encontrava a família real, com o objectivo de alcançar, através da assinatura do monarca, a plenitude das condições para a vigência urgente do diploma. Em Lisboa lavrava a murmuração que dava como certa a existência de uma lista de proscritos, designados pelo ditador, prontos a ser expulsos do Reino. A ratificação régia foi dada no dia 31 de Janeiro de 1908. Apesar de seduzido pela riqueza cinegética dos montados alentejanos, D. Carlos entendeu que o momento histórico era demasiado solene para que o seu valido permanecesse na capital do Reino sem a sua expressa e presencial solidariedade. Entendeu regressar a Lisboa no dia seguinte, 1 de Fevereiro.

A viagem correu mal. O comboio real descarrilou e foi com atraso que a comitiva atingiu o objectivo. Era um fim de tarde luminoso e tão cálido quanto era permitido pelos rigores de Fevereiro. Nem uma nuvem no céu. Foi dito, mais tarde, que o rei fizera toda a viagem com estigmas de preocupação no rosto. No séquito dos aristocratas havia quem estivesse com turvos pressentimentos. Foi o caso da duquesa de Palmela, que interpelou João Franco sobre a segurança régia. Obteve a promessa de que tudo correria pelo melhor e que a família real seria ovacionada nas ruas pelo povo e, à noite, no teatro de S. Carlos, voltaria a ser vitoriada pela boa sociedade lisbonense. Era tão grande a confiança do ditador numa recepção entusiasta que o rei e os seus familiares iniciaram o trajecto a percorrer no interior de uma carruagem aberta. Também constou que D. Carlos dispensara uma guarda de honra, como forma de demonstrar à cidade que a normalidade era completa. Lentamente, a carruagem deslocou-se para a esquina próxima da arcaria correspondente ao Ministério da Fazenda. Foi então que a tragédia se consumou.

As versões foram múltiplas e contraditórias. Estampidos vários ocorreram. Quantos? Uns tantos. A família real foi alvejada. Por quantos conspiradores? Dois, seguramente. Mas não seriam três? Ou mesmo mais? Um deles era mais novo e bem vestido. Saltou como um gamo para as traseiras da carruagem e disparou mais do que uma vez com um revólver, enquanto a rainha D. Amélia o procurava sacudir, agitando freneticamente um ramo de flores. Um outro, mais velho e mais alto, de barba preta, retirou de um gibão ou varino uma carabina e disparou repetidamente, antes de ser abatido por um sabre vingador. O rapaz novo chamava-se Alfredo Luís da Costa. O homem das barbas dava pelo nome de Reis Buiça. Nem um nem outro tinham dúvidas de irem morrer. O atentado, que ceifou imediatamente a vida a D. Carlos e fez morrer mais lentamente o Príncipe Real, D. Luís Filipe, ferindo ainda ligeiramente o filho mais novo, D. Manuel, instalou o pandemónio e a desorientação nas tropas e entre os populares. Tudo correu de uns lados para os outros, sem norte e sem tino. As forças policiais desvairaram a um tal ponto que assassinaram a sangue frio um popular, Sabino da Costa, empregado comercial, no interior de uma esquadra da polícia, só porque ele se apresentava ferido. A noite foi caindo sobre uma cidade apavorada. Soube-se depois que os matadores eram carbonários. Teriam agido por conta própria? Há razões para supor que sim. A investigação histórica ainda não pôde estabelecer, até ao presente, outras conclusões. E iria perder-se o rasto do inquérito judicial que foi aberto para indagar com minúcia sobre as circunstâncias do drama. Este descaminho não se verificou no tempo da República. Ocorreu em pleno reinado de D. Manuel II, último rei da dinastia de Bragança.

Publicado por Amadeu Carvalho Homem

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Republicanismo e República IX

O 5 de Outubro de 1910

Os anos de 1909 e 1910 viram agigantar-se a campanha de agitação republicana. Neste campo de acção, a imprensa desempenhou um papel decisivo. Para além dos jornais com vínculo ao Partido Republicano, havia jornais de grande tiragem que insistentemente advogavam a necessidade da mudança de regime como solução única para o momentoso problema político então vivido em Portugal. Estavam no caso jornais como o Século, dirigido por Magalhães Lima e a Luta de Brito Camacho. Nas vésperas da República entraram neste combate outros diários como A Capital, dirigida por Manuel Guimarães; A República de Artur Leitão; e O Radical dirigido por Marinha de Campos. Não há memória de, entre nós, se fazer, como então se fez, obra jornalística e panfletária de tamanha envergadura.

Na opinião pública fundara-se a convicção de que a Monarquia tinha os seus dias contados. A Revolução estava eminente. Existiam, todavia, algumas divergências entre o Directório do Partido Republicano e a Alta Venda Carbonária, liderada então por Machado Santos. Tudo isso ia atrasando a aplicação prática do Plano, já então gizado, para tomar conta do País.

Depois de sucessivos adiamentos – Abril, Julho, Agosto - a Revolução começou a tomar forma na madrugada de 3 para 4 de Outubro de 1910, com tropas a sair de Campo de Ourique e de Campolide para a Rotunda e com as guarnições amotinadas dos cruzadores Adamastor e São Rafael a prepararem-se para bombardear o Palácio das Necessidades. Ao raiar do dia «contadas as espingardas», constatou-se que o número de insurrectos acantonados era muito escasso para levar com êxito o empreendimento; dispunham, no entanto, de 8 peças de artilharia. Tinha havido uma imensa descoordenação e daí faltas de comparecimento de dirigentes comprometidos com o projecto, deserção de oficiais, falhas de informação e de ligação. Notícias de que a revolução havia fracassado e que “estava tudo perdido, levaram a que o vice-almirante Cândido dos Reis, chefe militar da Revolução, pusesse termo à vida com um tiro de pistola, numa viela esconsa de Lisboa.

O Conselho de Oficiais, reunido na Rotunda sob o comando do capitão Sá Cardoso pronuncia-se pelo abandonar das armas. Não é essa, porém, a disposição de Machado Santos que, conjuntamente com civis, soldados, cabos e alguns sargentos decide permanecer nas barricadas da Rotunda e resistir. Dos que aí ficam, a maioria dos civis e muitos militar de baixa patente são membros da Carbonária; conseguem estabelecer ligações com outros núcleos carbonários activos em Lisboa e, em conjunto obter a neutralização de algumas unidades monárquicas. Durante o dia vão afluindo à Rotunda mais militares e civis. O acampamento acaba por resistir bem aos ataques da artilharia de Paiva Couceiro. A meio da tarde o Adamastor e o S. Rafael bombardeiam o Palácio das Necessidades. O rei foge para a Ericeira. O conhecimento desta fuga tem um impacto muito negativo nos comandos das forças monárquicas.

Chega-se ao dia 5, são 8 horas da manhã. Dá-se então um episódio curioso: o encarregado de negócios da Alemanha em Lisboa sobe a Avenida da Liberdade em direcção à Rotunda e pede para falar com Machado Santos. Alegando que havia falado com o General Gorjão, pretendia então uma trégua de uma hora para evacuar a salvo os súbditos alemães residentes em Lisboa. Machado Santos começa por recusar, pensando haver ali uma manobra de dilação com o sentido de as forças do Rossio ganharem tempo, mas depois, pensando melhor, disse ao diplomata para ficar tranquilo que ele iria resolver o assunto.

Enverga então a melhor farda, monta a cavalo e desce a Avenida da Liberdade. Ora o povo que aquela hora era já muito, quer no Rossio, quer na Av. da Liberdade, que tinha visto uma bandeira branca subindo à Rotunda e via agora Machado Santos a descer em direcção ao Rossio, convenceu-se de que os monárquicos tinham capitulado e então foi um mar de gente caminhando ao lado do cavalo de Machado Santos, aos gritos de “Viva a República”. Gente que invadiu literalmente o Rossio e se pôs a confraternizar com os soldados das forças monárquicas, os quais se iam passando aos magotes para o lado dos revoltosos.

Machado Santos entra na tenda de Gorjão e convida-o a render-se. Este hesita, mas acaba por aceder, colocando apenas como condição que fossem poupadas as vidas da família real, o que, lhe foi, de imediato, garantido.

Estava implantada a República em Portugal. Poucas horas depois, às janelas da Câmara Municipal e perante uma massa enorme de gente, Eusébio Leão lia a respectiva Proclamação.

Caíra a Monarquia da Carta! Nascera a República, herdeira do liberalismo vintista!

Publicado por Fernando Fava

Memorial Republicano LV

A Revolta de 28 de Janeiro de 1908

O vulcão revolucionário de Lisboa fumegava como nunca. A ditadura franquista produzira no universo político uma irritação como poucas vezes se vira. Não eram agora só os republicanos a desejarem o retorno à normalidade constitucional e a devolução das garantias cívicas, atacadas em todas as frentes. Era uma vasta frente de oposição, na qual se divisavam regeneradores, progressistas, dissidentes, anarquistas, socialistas e até a grande massa anónima dos cidadãos vulgares, sem filiação partidária definida. Falava-se em aprisionar e até em eliminar fisicamente João Franco. Os presságios timbravam pela convergência e unanimidade. Uma onda de boatos invadiu a opinião pública quando foram presos João Chagas, Alfredo Leal, França Borges e sobretudo António José de Almeida. Este era o idolatrado tribuno do republicanismo, o Verbo revolucionário por excelência, o mentor de todas as esperanças de amanhã, o aval de todas as indignações. João Franco recebia pelo correio, todos os dias, numerosas cartas, expressando a maioria delas os protestos mais indignados e consignando uma minoria das mesmas o incentivo da solidariedade e do apoio. Uma dessas cartas recomendava com ênfase que não se tocasse em António José de Almeida. Muitos atentos observadores da realidade previam um desenlace catastrófico. Raul Brandão escreveu num dos seus volumes de “Memórias”: “Isto, toda a gente o afirma, acaba logicamente no atentado pessoal”. Não eram outras as palavras de Cunha e Costa, ao vaticinar: “Há mais de duzentas pessoas apostadas em matar João Franco. Isto acaba por um atentado pessoal”. O ditador procurava trocar as voltas aos inimigos, mudando frequentemente de domicílio e tornando o seu paradeiro difícil de situar.

A conspiração progredia a olhos vistos. No sector militar distinguia-se especialmente o oficial marinheiro Cândido dos Reis, com os seus longos bigodes pendentes e um olhar vivo mas melancólico. Por seu turno, os conjurados militares começaram a reparar num humilde comissário naval, Machado Santos de seu nome, sem nada de especial a recomendá-lo senão o ardente desejo de derrubar as instituições e um optimismo ingénuo, a roçar a insensatez. Aliás, era no grupo dos marinheiros que a revolução recrutava boa parte dos seus efectivos, com destaque para João Serejo, Álvaro Andreia e Marinha de Campos. Também os civis se movimentavam. Alguns deles eram responsáveis cimeiros do Partido Republicano, mas outros não apresentavam outros créditos para além dos da sua generosidade para com a causa do republicanismo. Contavam-se neste número o comerciante Alfredo Leal e o seu irmão, proprietários da casa comercial “A Liquidadora”, a qual serviu de depósito de armamento para a conjura em marcha. Na zona de Alcântara situava-se a “Tipografia Liberty”, na Calçada do Sacramento, que os irmãos Lamas (Franklin e Augusto) haviam convertido num foco conspiratório muito activo. O rebentamento de bombas em Lisboa, nomeadamente na Rua do Carrião, certificava a natureza de um clima social crispado, pronto a explodir ao primeiro pretexto.

Traçaram-se estratégias, discutiram-se movimentos de tropas, combinaram-se ataques a zonas e instituições vitais para o poder monárquico e em tudo isto se distinguiram, pela sanha combativa e pela intransigência próxima do ódio, os homens da Dissidência Progressista de José de Alpoim. Monárquicos, portanto! Mais: sobram os testemunhos dos que afiançam que a maior parte do armamento, distribuído sobretudo a civis, veio das hostes alpoinistas. Hostes monárquicas, portanto!

Depois de vários avanços e recuos, a eclosão do movimento revolucionário ficou marcada para 28 de Janeiro de 1908. Mas ficara combinado que os sinais de desencadeamento da acção só seriam accionados após se conhecer a prisão de João Franco. Isto revelou-se fatal para o sucesso do empreendimento. Afonso Costa, ao qual tinha sido cometido a chefia civil da revolução, negou-se a avançar antes de lhe ser afiançada a neutralização do ditador. Um dos mais importantes locais de concentração dos revolucionários iria funcionar no ascensor da Biblioteca, que viabilizava a ligação entre o Largo do Pelourinho, paredes-meias com a Câmara Municipal, e o Largo da Biblioteca. O projectado assalto ao edifício autárquico far-se-ia a partir dessa posição. A audácia era grande, uma vez que o local era contíguo a uma esquadra policial. Além do mais, o elevador encontrava-se paralisado e sem prestar o serviço para que tinha sido concebido. Mas foi lá que se concentraram os mentores do movimento, os quais, pelo seu número e notoriedade pública, atraíram a atenção e a perplexidade de um guarda de giro. Foi este que denunciou à sua chefia hierárquica o insólito da situação. Por isso, lá acabaram por ser presos Afonso Costa, o visconde da Ribeira Brava, Álvaro Pope, Egas Moniz e outros conjurados de menor envergadura. Gorara-se esse 28 de Janeiro, apesar de incidentes sangrentos que aconteceram em locais sensíveis da cidade de Lisboa.

Estava feito o ensaio geral da revolução republicana, a estalar num futuro próximo. Mas antes dela ocorreriam outros dramáticos desenlaces.

Publicado por Amadeu Carvalho Homem