terça-feira, 30 de março de 2010

Republicanismo e República IV

Franco ao Poder ou o princípio do fim

Os acontecimentos anteriormente narrados, a par das revoltas de marinheiros republicanos, ocorridas a 8 e a 13 de Abril de 1906, a bordo do cruzador D. Carlos I e do couraçado Vasco da Gama, foram devidamente aproveitados pela imprensa republicana e contribuíram definitivamente para o profundo desgaste da imagem do ministério regenerador de Hintze Ribeiro, quer junto da opinião pública quer junto da Coroa. Atemorizado com o estado da situação política e prevendo eventuais sessões tumultuosas no parlamento recém-eleito, o chefe regenerador tentou ganhar tempo suficiente para que os ânimos esfriassem. Nesse sentido, predispôs-se a governar em ditadura, pedindo ao rei o adiamento sine die da abertura das cortes. Na sua célebre carta de 16 de Maio de 1906, D. Carlos negou-lhe o adiamento das sessões parlamentares. De imediato, Hintze pediu a demissão do gabinete ministerial e o rei concedeu-lha. No seguimento, o monarca chamou João Franco ao Paço e encarregou-o de formar gabinete ministerial. Assim é que, pela mão do próprio soberano, estava colocado um ponto final ao rotativismo. Na verdade, D. Carlos estava de posse de informações que lhe permitiam e até encorajavam esta medida, visto que, por intermédio da pessoa do próprio José Luciano de Castro, acompanhara as negociações iniciadas em Março de 1906 entre o Partido Progressista e o Partido Regenerador-Liberal de Franco, na sequência das quais fora firmado, nos primeiros dias de Maio, um acordo político a que fora dado o nome de Concentração Liberal. Em conformidade, José Luciano dera garantias de que apoiaria a formação de um ministério formado por regeneradores-liberais e presidido por João Franco, muito embora não quisesse para si ou para o seu partido, de acordo com as suas próprias palavras, “pastas nem postas”.

Considerando que os progressistas haviam sido apeados da governação havia apenas dois meses e que o governo dos regeneradores empossado há 58 dias chegara tão depressa e tão desastradamente ao seu fim, concluir-se-á que, na circunstância, D. Carlos foi, praticamente, empurrado para esta solução, dado já não lhe restar margem de manobra para operar mais uma tradicional rotação. Sendo isto verdade, também facto é que da decisão do soberano de entregar o poder executivo a João Franco, não estava arredada uma intenção pessoal de romper com o rotativismo e com os dois partidos que lhe davam corpo. É que, desgastadíssimos estes com o uso, tantas vezes aviltante e estéril, do poder, a sua

manutenção, como principais intérpretes da política nacional, contribuiria apenas para dar continuação a um estado de coisas que não só não solucionava os graves problemas nacionais, como, pior ainda, era propiciador de um contínuo deslizar do país para a república. Atento, D. Carlos há muito tinha intuído esta realidade e, na ocasião, julgou ver, nos propósitos reformadores do franquismo (intensamente propagandeados) a oportunidade para corrigir os «erros que de longe vêm» (palavras suas na aludida carta a Hintze Ribeiro) e para travar os ímpetos republicanos. Nos contornos da decisão então tomada era também notória uma apetência para um reforço dos poderes e da influência do rei, porque, desta forma, a sua pessoa teria, necessariamente, um maior ascendente sobre um governo assim formado. De facto, o futuro breve viria a confirmar uma maior presença e intervenção do rei nos negócios políticos, o que não deixava de ser do agrado de D. Carlos, sensível que era às teorias do engrandecimento do poder real, tecidas e propugnadas por Carlos Lobo d’Ávila e por Oliveira Martins, membros proeminentes do grupo de diletantes autodenominado “Vencidos da Vida”. De notar que as teorias apoiadas por esse grupo, tinham, ao tempo e entre a intelectualidade, muitos seguidores. Um testemunho insuspeito desta propensão de mando por parte do monarca D. Carlos é-nos dado por António Cabral, figura muito próxima de José Luciano de Castro e escrevinhador de crónicas em O Correio da Noite, órgão do Partido Progressista. Produziu ele a afirmação seguinte: “No ânimo imperioso de El-Rei, havia, a par da sua natural delicadeza e do respeito à lei, o desejo e a vontade de mandar”. Tal vocação de mando por parte do rei, em manifesto atentado à Carta Constitucional, haveria de o levar a apadrinhar medidas e situações que, em muito, contribuíram para o fim da monarquia e, antes disso, para o seu próprio e funesto fim. Desta forma, pela mão do monarca e com a ajuda dos rotativistas do Partido Progressista, chegou João Franco ao poder. Os seus inimigos de ontem eram amigos ou aliados de hoje; por sua parte estavam convenientemente esquecidas as razões que a eles o haviam oposto e a verrinosa e continuada retórica que sobre eles exercera. Não se ficariam por aqui as contradições que distinguiriam, pela negativa, a governação de Franco.

Publicado por Fernando Fava

Memorial Republicano XXII

O barril de pólvora da bacia do Congo

A partilha da África por parte das potências coloniais europeias foi um dos episódios mais hipócritas alguma vez acontecidos na cena política mundial. A Europa arrogava-se o exclusivo daquilo que designava por “Civilização”, entendendo por esta palavra o todo compósito da sua religião, cultura, hábitos, tipos de sociabilidade e tradições. Daqui decorria que a peculiaridade dos gentios autóctones, em todas as suas dimensões e formas de expressão, era interpretada como sinal de inferioridade e de primitivismo selvagem. E era em relação a este estigma de subalternização que se arvorava a legitimidade de uma presença europeia omnímoda. Por maiores que fossem ou viessem a ser as crueldades, os excessos, as formas escancaradas da mais desenfreada exploração, incidindo sobre o património natural ou sobre a mobilização compulsiva de mão-de-obra – tantas vezes na sua modalidade extrema de escravatura – a Europa declarava invariavelmente, através dos seus políticos, que se encontrava em África numa superior “missão civilizacional”!

O caso da Bélgica foi, a esta luz, verdadeiramente emblemático. Em 1876, Leopoldo II reuniu em Bruxelas um Congresso Geográfico Internacional que se propunha debater os momentosos problemas do esclavagismo, do abolicionismo e do desenvolvimento das colónias em todas as suas vertentes, mesmo as mais decantadamente éticas. A partir das mimosas preocupações enunciadas pelos congressistas, assistiu-se ao nascimento, nos anos seguintes, de um conjunto de Associações Internacionais e de Comissões de Estudo que foram deixando esbater as originárias intenções de cooperação, multilateralidade e elevação civilizacional para tudo acabar por se reduzir a uma artificiosa operação de anexionismo colonial. Foi em 1883 que Leopoldo II e Stanley criaram a Associação Internacional do Congo, para a qual reclamaram personalidade jurídica internacional e que iria dedicar-se à tarefa de erigir um futuro estado “autónomo” na bacia do Congo. Era a semente do futuro Congo Belga e a alvorada de um dos mais sombrios episódios de desaforada e inaudita instrumentalização de nativos.

Portugal invocava direitos sobre alguns territórios dessa zona. A estratégia lusitana consistia em definir um eixo de expansão a partir do Ambriz, ocupado em 1855, tendo em vista o ulterior avassalamento de Noki, Cabinda e Molembo. Tal projecto não era apenas contestado pela Bélgica; também a Grã-Bretanha, através da diplomacia de Palmerston, movera pressões tendentes a reduzir consideravelmente as ambições portuguesas. E elas só não foram mais longe porque a rainha Vitória temia as retaliações que poderiam ser suscitadas pela França, que se instalara ao norte do Zaire, e pela Alemanha, que pensava seriamente em consolidar a sua presença a sul de Angola (futuro Sudoeste Africano Alemão) e a norte de Moçambique (futura África Oriental Alemã).

Neste xadrez de interesses, sempre velado pela dialéctica perversa de promover o indigenato à “Civilização”, movimentava-se febrilmente um vasto grupo de comanditários e agentes internacionais, a soldo das potências interessadas. Alguns traziam roupetas de missionários, outros botas ferradas de caminheiros, ainda outros lupas e binóculos de botânicos e zoólogos, sendo certo que todos se encontravam mais ou menos comissionados pelos governos europeus correspondentes. A missão de quase todos eles consistia em aliciar os sobas e os chefes locais para a proclamada vantagem de celebrar acordos preferenciais de protectorado com esta ou aquela potência, ao mesmo tempo que se desqualificavam por todos os meios quaisquer outras alianças anteriormente firmadas, caso existissem.

Portugal apercebeu-se que os seus direitos na bacia do Zaire não deixariam de ser questionados e pretendeu alcançar, pelo menos, o consenso britânico. Por isso firmou com Londres, em 26 de Fevereiro de 1884, o chamado tratado do Zaire. As negociações tinham sido iniciadas por António de Serpa e concluídas por Barbosa du Bocage. Portugal comprometia-se a abrir à navegação o curso português dos rios Zaire e Zambeze, reconhecendo como válidos todos os tratados que os agentes britânicos haviam arrancado aos sobas; todavia, eram-lhe reconhecidos importantes direitos ao norte do Ambriz e também homologados os seus limites fronteiriços na região congolesa.

As reacções, internas e internacionais, não se fizeram esperar. A opinião republicana logo sustentou que as cláusulas do tratado reproduziam o mesmo espírito de cedência e o mesmo reverencial temor que já maculara o tratado de Lourenço Marques. E também internacionalmente se fizeram ouvir vozes de protesto, vindas da Bélgica, França e Alemanha. Não se divisavam processos de regulação e de pacificação, no plano do direito internacional, que aplacassem iras, cobiças e ardentes brios nacionalistas dos governos europeus com “vocação colonialista”. Tudo isto se abonava, bem entendido, com o argumento dos “superiores interesses de África e das suas gentes” …

Publicado por Amadeu Carvalho Homem

Memorial Republicano XXI

África dividida, África violada

A contradição da Europa industrial na segunda metade do século XIX entronca no paradoxo de uma produção em pleno crescimento, graças à eficácia de tecnologias cada vez mais apuradas, contraposta à vozearia dos famintos, alastrando como mancha de óleo, sem a menor capacidade económica para a aquisição dos excedentes produtivos. Os governos liberais europeus são colocados perante climas de contestação e de mal-estar social que se desenham sobre panos de fundo de evidente expansionismo produtivo. Mas a potencial prosperidade, oriunda deste acréscimo de bens mercantis, passa ao lado de incontáveis multidões, anémicas, miseráveis e destituídas de poder de compra. O comércio internacional refina as tendências de emulação entre os países produtores, resultando desta realidade o recurso a variados expedientes proteccionistas. Foram estes condicionalismos que impeliram tais governos à definição de políticas alternativas de emigração.

É certo que a África apareceu aos olhos dos europeus com o peso de reticências e de prevenções. Ao continente africano atribuíam-se perigos vários, tanto naturais como humanos. Compunham-lhe a imagem tanto as febres palustres como os gentios supostamente ferozes, tanto o rastejar das víboras como as garras das feras à solta. Foram necessárias as narrativas serenas e menos temíveis de missionários, geógrafos, garimpeiros, botânicos ou simples aventureiros para que essa imagem se viesse a revelar mais tranquilizante.

Entre 1840 e 1873, o missionário inglês David Livingstone deambulou pelo rio Zambeze, pelo lago Niassa e pela região do Tanganica e descobriu as nascentes do Congo. Por seu turno, a França colocou em 1881 a Tunísia sob o regime de protectorado e reforçou a sua presença colonialista no Daomé, na Costa do Marfim, no Senegal, na Mauritânia. Em relação ao centro equatorial africano, as ambições francesas eram interpretadas pelo conde Savorgnan de Brazza, um italiano que se naturalizara francês e que lançou os alicerces da futura cidade de Brazzaville. O monarca belga, Leopoldo II, começou por invocar os mais altos princípios filantrópicos, de combate ao esclavagismo, para lançar uma “Comissão de Estudos do Alto Congo”, organização que acabaria por se revelar mais vocacionada para lançar as bases do futuro Congo Belga do que para lutar pela causa da emancipação negra. O rei dos belgas contou com a cooperação do jornalista americano Stanley, o qual não se limitou a fazer-lhe a apologia pessoal e ideológica mas, replicando a Brazza, veio a fundar, em 1881, na margem esquerda do Zaire, frente a Brazaville, a estação-entreposto de Leopoldville. A Alemanha de Bismarck irrompeu mais tardiamente no continente africano, levada pela mão de companhias privadas, às quais se concederam direitos majestáticos. Só em Abril de 1883 Lüderitz se implantará nos territórios de que iria nascer o futuro Sudoeste Africano Alemão, ao passo que a colónia da África Oriental Alemã se iria forjar a partir da ilha de Zanzibar. Por seu turno, a Grã Bretanha já jogava, desde há muito, todo o seu peso estratégico não apenas no Egipto, onde disputou vitoriosamente à França a imposição do correspondente protectorado, como também na colónia do Cabo, na ponta meridional do continente, aí estabelecendo uma testa de ponte direccionada às regiões que haviam acolhido os estados boers.

Pode assim dizer-se que o vinténio posterior a 1870 assistirá a uma desordenada “corrida à África” por parte de antigas e novas potências colonialistas, finalmente rendidas a promessas de fartura e a crises de cupidez sem paralelo, as quais, em incandescência progressiva, ganharam alento desde a descoberta dos diamantes de Kimberley, em 1867, à revelação dos filões auríferos do Transvaal, em 1885.

Portugal limitou-se a assistir, passivo e contemporizador, à erupção deste vulcanismo imperialista. Supunha, aliás, que os seus direitos históricos, comprováveis por vetustos testemunhos documentais e por sinais de edificação deixados ao longo da costa africana, seriam suficientes para preservar a secular herança das suas navegações. De resto, pouco poderia fazer. Os sucessivos governos nascidos da revolução regeneradora de 1851, tiveram o condão de desenvolver um pouco mais o Reino, mas à custa de um insustentável endividamento externo. Regara-se o país a libras esterlinas, mas a potência credora – a Grã-Bretanha – não se distinguia no concerto internacional por generosidades pecuniárias ou por transigências dilatórias na cobrança dos débitos. O que se poderia pressentir era que Portugal não resistiria a desafios de aprofundamento colonialista, se eles viessem a colocar-se. Poderia até haver vontade. Mas era seguro e certo que se trataria de uma vontade órfã de meios. Deste modo, o abalo da consciência republicana gerado pelo Tratado de Lourenço Marques poderia vir a repetir-se. E era de calcular que quanto maior viesse a ser o agravo, quanto maior pudesse ser a cedência, maior seria – sobretudo por parte dos republicanos – o desejo de desforra.

Publicado por Amadeu Carvalho Homem

Memorial Republicano XX

O tricentenário de Camões

Algumas determinações vexatórias do Tratado de Lourenço Marques suscitaram junto do público uma reacção de grande desagrado. Temia-se pelo esfacelamento do império colonial português, às mãos gananciosas e implacáveis da Grã-Bretanha. Era necessário que alguma coisa de poderoso e de notável pudesse ocorrer para que o sentimento de desânimo, que lavrava entre nós, pudesse ser substituído por uma mais esperançosa crença no futuro da Pátria.

O Visconde de Juromenha, investigador laborioso e atento, descobrira num velho documento, compulsado na Torre do Tombo, que o Grão-Poeta Camões falecera em 10 de Junho de 1580. Assim sendo, a data de 10 de Junho de 1880 coincidia com o tricentenário da morte do eterno autor d’Os Lusíadas. Era tempo de evocar a memória do vate, atando à sombra da sua portentosa figura, num só feixe de crença e de esperança, os brios do nosso Povo. Impunha-se que o porte altivo de Camões convertesse o abatimento em entusiasmo, a descrença em força de afirmação, a negatividade descoroçoada em projecto galvanizador de futuro.

No fim da primeira semana de Janeiro de 1880, Teófilo Braga, prestigiado professor do Curso Superior de Letras e reputado teórico do republicanismo, fez-se paladino da ideia do Tricentenário, escrevendo no Comércio de Portugal, de Sebastião de Magalhães Lima, um primeiro conjunto de três artigos, nos quais a ideia era ardentemente propugnada. Foi como se um rastilho tivesse pegado lume. Logo vieram à ribalta pública uma mão cheia de estudantes, publicistas, jornalistas, figuras institucionais e simples anónimos, afirmando, todos à uma, a sua solidariedade para com o desígnio proposto. Assim, fácil foi organizar, sob os auspícios de Luciano Cordeiro e da Sociedade de Geografia, uma comissão executiva de jornalistas e de escritores, aos quais foi cometido o encargo de planear as celebrações. Essa comissão congregava o melhor que Lisboa podia apresentar nos planos do saber e do desinteressado amor ao património lusitano. A presidência honorária foi entregue a António Rodrigues Sampaio, decano dos jornalistas portugueses. Mas lá se identificavam igualmente os nomes de Ramalho Ortigão, Jaime Batalha Reis, Manuel Pinheiro Chagas, Eduardo Coelho, Luciano Cordeiro, do Visconde de Juromenha e ainda de Sebastião de Magalhães Lima, Teófilo Braga e Rodrigues da Costa. Os estudantes logo quiseram juntar a sua própria estrutura organizativa a este considerável escol da intelectualidade do tempo. Mas os grupos afectos à governação e à administração da monarquia não se revelavam tão eufóricos. É que a figura de Teófilo Braga, primeiro defensor da ideia, era suspeita aos corrilhos do Paço. Aliás, a incumbência de fixar em definitivo o programa do Tricentenário impendera sobre Teófilo e também sobre Ramalho Ortigão. Ora, o muito conhecido autor d' As Farpas, com a pedagogia de contorno positivista que imprimira aos famosos caderninhos, também não reunia, por esta altura, especiais simpatias junto dos áulicos da realeza. A imprensa oficial tentou trivializar o evento. A Igreja alheou-se dele. A grande aristocracia e a burguesia opulenta deram-se a uma neutralidade postiça.

Chegou, finalmente, o aguardado dia 10 de Junho de 1880. Lisboa engalanou-se e fez-se moça. Um colorido cortejo cívico percorreu algumas das ruas da Baixa, com os seus carros alegóricos – da Agricultura, da Instrução, do Comércio, de diversas colectividades e agremiações e de distintos ramos de actividade – por entre a alegria esfuziante dos estudantes e o aplauso cúmplice dos populares, que aplaudiam a partir de passeios apinhados. Troava a artilharia sincopadamente, ao mesmo tempo que o estampido de foguetes, lançados a partir do Castelo de S. Jorge, espalhava nos céus pequenas nuvens de fumo. O préstito cívico iniciou a sua movimentação a partir do Terreiro do Paço, onde se encontrava instalado o pavilhão real. Mas junto dele as aclamações baixaram de tom. Houve bandeiras de colectividades que não se curvaram em saudação a D. Luís. E este, por sua vez, negligentemente, também não se dava ao esforço de corresponder às saudações, conversando e galhofando com amigos, ministros e Pares do Reino. Imperturbável, o cortejo coleou na direcção do Largo do Pelourinho, calcorreando as ruas Augusta, do Ouro e do Arsenal. Subiu depois a Rua Nova do Almada e irrompeu no Chiado, invadindo a simbólica Praça de Camões. E logo desceu a Rua do Alecrim, para se dissolver no Cais do Sodré.

O episódio deste latente divórcio entre as turbas populares e a monarquia foi imediatamente aproveitado pela propaganda republicana. Rafael Bordalo Pinheiro logo desenhou no seu O António Maria a figura de Camões, de cabeça coberta por um barrete frígio, agradecendo a um D. Luís contrafeito e minúsculo, a honra de o ter feito republicano. Pela forma inábil como o regime vigente se comportou, o Tricentenário de Camões foi arvorado em símbolo por todos os que sonhavam com outros rumos, mais democráticos e benfazejos. A republicanização de Camões, ícone imorredoiro da Pátria portuguesa, significou, para muitos, o ponto de viragem para um outro e melhor destino.

Publicado por Amadeu Carvalho Homem

Memorial Republicano XIX

Sebastião de Magalhães Lima: Democrata, Socialista e Pacifista

Ainda estavam quentes as brasas emotivas que aqueceram a contestação ao tratado de Lourenço Marques quando surgiu em Lisboa um novo jornal, de risonho futuro. Intitulava-se O Século e nele iria ressoar, durante décadas a fio, a interpretação republicana dos acontecimentos nacionais e internacionais. Era dirigido por Sebastião de Magalhães Lima.

Quem era Magalhães Lima? Que créditos poderia apresentar perante a causa democrática? Nascera no Rio de Janeiro, no seio de uma família culta e abonada. Chegado à adolescência, atingida ao redor dos inícios do decénio de 60, os pais mandaram-no estudar para Lisboa, complementando os seus estudos intermédios com um sólido domínio das línguas francesa, inglesa e alemã. Quando arribou a Coimbra, para cursar Direito, ainda por lá vibravam as memórias e façanhas da notável geração de Antero de Quental, João Penha, Teófilo Braga, Eça de Queirós, João de Deus e Guerra Junqueiro. Além dos estudos jurídicos, necessários à progressão no curso, o jovem Sebastião de Magalhães Lima dava-se à literatura e ao debate panfletário das ideias. Versejou romanticamente, como tantos outros, sob o embalo das calmas águas do Mondego, correndo por entre choupos e salgueirais. Confessava-se então socialista e fez questão de manter essa identidade ideológica durante toda a sua existência. Contudo, o seu socialismo distanciava-se das apóstrofes de Karl Marx e de Engels, uma vez que repudiava toda e qualquer metodologia violenta e que considerava iníqua a luta colectiva sem quartel, alentada por meros egoísmos de classe. Reconhecia a “questão social” e procurava sinceramente a suavização da sorte madrasta dos pobres. Por isso se batia por um socialismo idealizado, ético, baseado no desenvolvimento dos imperativos das Consciências em alerta. As suas leituras deram-lhe a conhecer os textos de Benoit Malon, nos quais se procurava um caminho intermédio entre a impotência discursiva e utópica de um Fourier, de um Cabet ou de um Saint-Simon e a implacabilidade das dialécticas marxistas. Por aí, por Malon se viria a fixar, rendido e reverente perante o pensamento de um autor que antecipava um futuro de Paz e de Concórdia para a sofredora Humanidade.

Foi ainda em Coimbra que fundou com Alves da Veiga e Alves de Morais o periódico República Portuguesa, manifestando o seu radical laicismo e o seu acendrado credo democrático em textos como os que fez publicar sob os títulos Padres e Reis ou O Papa perante o século. Ainda estudante, merecera a honra de ser escolhido por José Falcão para saudar o prestigiadíssimo chefe do republicanismo espanhol, Emílio Castelar, quando este visitou a academia coimbrã.

Após a sua formatura, Sebastião de Magalhães Lima singularizar-se-á como um verdadeiro embaixador intelectual junto da Europa mais culta, como um dos maiores jornalistas do seu país e como um defensor intransigente do pacifismo e da negociação para a ultrapassagem de todos os contenciosos internacionais. A sua identificação com os ideais maçónicos correspondeu, pois, à evolução natural do seu espírito, chegando a atingir a culminância do Grão-Mestrado.

A sua voz ouvir-se-á em todos os momentos críticos da vida portuguesa. Em 1880, nas colunas do jornal O Século, travou uma enérgica campanha anti-britânica e anti-monárquica perante as cedências constantes do tratado de Lourenço Marques e empurrou a população lisboeta para os braços dos promotores do Tricentenário de Camões, momento alto de afirmação patriótica, volvido em solene manifestação pró-republicana pelo inepto distanciamento da realeza. Após o Ultimato inglês de 11 de Janeiro de 1890, iniciou um périplo por muitas das principais cidades europeias – como Madrid, Barcelona, Paris e Bruxelas – para defender as prerrogativas da colonização portuguesa ante a investida da “pérfida Albion”. Ao tornar-se uma referência de causas generosas e uma voz ao serviço da Justiça internacional, Sebastião de Magalhães Lima passou a ocupar lugares cimeiros nas mais relevantes organizações internacionais. Foi um dos fundadores da Associação dos Amigos da Paz, com sede em Paris. A Conferência Internacional Maçónica de Antuérpia recebeu-o, em 1894, com sinais de grande regozijo. Em 1898, rendendo preito ao seu combate em prol de soluções federalistas latinas, foi convidado pela Universidade Livre de Bruxelas a reger um curso sobre os fundamentos do federalismo. Passou por grandes congressos internacionais, reunidos no ano de 1904, como o da Imprensa, em Viena de Áustria, e o do Livre Pensamento, em Roma.

Mas foi empunhando a pena, como director ou redactor de jornais republicanos, que Sebastião de Magalhães Lima alcançou uma posição de especial destaque. Os seus artigos na Folha do Povo e na Vanguarda, após a sua saída do jornal O Século, dão-nos o testemunho de um espírito vigilante, determinado e arguto, mas sem rancores ou raivas escondidas. Ao lê-lo, ainda hoje é notório que ele apenas desejava uma Pátria livre e tolerante, digna dos portugueses, junto dos quais, apesar do clangor internacionalista do seu nome, queria viver como igual e como irmão.

Publicado por Amadeu Carvalho Homem

Memorial Republicano XVIII

Esta caricatura, de Rafael Bordalo Pinheiro, representa D. Luís-Laocoonte e os seus "filhos" Fontes e Braamcamp a serem martirizados pelas roscas das serpentes, figuração satírica das dificuldades da época. Na perna esquerda do monarca o aperto remete para "Lourenço Marques", numa clara alusão ao escândalo do Tratado com esse nome.

O Tratado de Lourenço Marques : antecedentes e consequências

Portugal, na sua demanda comercial africana, de início meramente costeira, instalara pelos finais do século XVI umas tantas palhotas na zona correspondente à baía de Lourenço Marques. Os indígenas davam o nome pomposo de feitorias a esses acampamentos improvisados. O lugar era aprazível e proporcionava um fácil acesso às zonas mais interiores, possibilitando um comércio muito lucrativo: alguns metros de tecidos baratos e coloridos, um punhado de missangas ou umas dezenas de litros de destilados alcoólicos eram permutados por marfim, âmbar, mel e mão-de-obra escrava. As vantagens estratégicas e económicas do lugar vieram a despertar cobiças por parte de outras potências colonizadoras europeias, de tal sorte que holandeses e ingleses, aproveitando a negligente e frequente omissão da presença lusa, passaram a disputar encarniçadamente as adjacências da baía, tentando firmar com os régulos da região acordos de protectorado, nomeadamente nas regiões de Temba e de Maputo. A Inglaterra, sob a férrea e puritana mão da rainha Vitória, viria a traçar, no decurso do século XIX, um arrojado programa de domínio colonialista, o qual, pelo que à África respeitava, assumia as proporções de um quase-monopólio. Esta imensa ambição, alargada ao tamanho de todo um continente, não poderia deixar de sofrer o confronto e a concorrência de outros intervenientes. Pelo que respeitava aos territórios africanos meridionais, os súbditos britânicos travaram uma longa disputa com os boers, descendentes dos antigos colonos holandeses da África do Sul, que lá se haviam instalado sob os auspícios da Companhia Holandesa das Índias Orientais. Os boers, gente rija e indómita, salvaguardaram as suas notas de identidade, tanto em relação à língua como aos costumes e tradições. Contrariaram o mais que puderam os desejos hegemónicos britânicos, sobretudo nos anos cruciais que antecederam 1815, data em que a Holanda cedeu à Grã-Bretanha a colónia do Cabo. Contudo, a coexistência das duas populações viria a revelar-se tão conflituante que a colónia boer, sobretudo a partir de 1835, decidiu emigrar, na direcção do norte. Por aí vieram a florescer soberanias anglófobas, sob a forma de Estados livres e republicanos. Orange, o Natal e o Transvaal constituíram as provas insofismáveis deste espírito de resistência e deste formal desafio à monumental cupidez vitoriana. A partir desta situação, desenhar-se-á todo um jogo de provocações diplomáticas e militares e de ardidas emulações, mais protagonizadas pelas cobiças da chancelaria britânica do que pelas provocações boers. Estes novos Estados encontravam-se perfeitamente conscientes da sua impreparação para neutralizar o colosso inglês.

O domínio da região de Lourenço Marques era crucial para a Grã-Bretanha. Ela implicaria o completo isolamento dos estados boers, roubando-lhes a sua natural e única via de acesso ao mar. Mas os governos portugueses, para grande desgosto da “nossa mais antiga aliada” – designação oficial e pouco verosímil… – mantiveram com as novas nacionalidades de cepa holandesa uma relação de cordialidade, chegando ao ponto de com elas firmar convénios de mútua cooperação. Tais acordos apontavam para a construção de vias férreas que poderiam converter o porto de Lourenço Marques no acesso marítimo de excelência do Estado Livre de Orange e da República do Transvaal. Conhecedor destas disposições, a governação britânica visou Portugal com o fogo nutrido das suas objecções e reticências. Por outro lado, eram antigos os desígnios ingleses de se apoderarem de restingas costeiras e zonas adjacentes à povoação de Lourenço Marques, embora não fosse contestada a soberania portuguesa sobre o povoado. Em 1860, o vice-almirante britânico Keppel fizera uma demonstração de força em Delagoa Bay – nome pelo qual a região era designada em Inglaterra – aí irrompendo com uma fragata de guerra. O assunto só ficou resolvido em 24 de Julho de 1875, quando uma sentença arbitral de Mac-Mahon, presidente da República francesa, reconheceu os direitos portugueses sobre os territórios em disputa. Manteve-se, contudo, a pressão inglesa. Para a atenuar, o ministro português dos Negócios Estrangeiros, Andrade Corvo, acabaria por aceder à assinatura do tratado de Lourenço Marques. Negociado no decurso de 1878, as suas cláusulas foram conhecidas pela opinião pública em 1879. Tratava-se, verdadeiramente, de um pacto leonino. O que aí se dispunha configurava literalmente uma situação jurídica de condomínio e reduzia Portugal a um simples instrumento da estratégia britânica. Exagero? Tamanho era ele que o próprio Times escrevia que o tratado mais não era do que «uma cedência de Portugal à Inglaterra»! Os publicistas republicanos denunciaram o escândalo com a maior vivacidade. Teófilo Braga, escrevendo no jornal A Vanguarda, qualificava o acordo como «a página mais afrontosa da nossa história no século XIX». O nosso republicanismo voltou a ser, neste contexto, o defensor dos brios patrióticos e o depositário da honra de Portugal.

Publicado por Amadeu Carvalho Homem

segunda-feira, 29 de março de 2010

Memorial Republicano XVII

Aspecto actual da Sociedade de Geografia de Lisboa

O frustrado imperialismo português

Primeiro, foi a África a atemorizar os colonizadores costeiros: era negra e ignota, exalando eflúvios de desconhecido e de intimidação. Depois, o desafio da sua obscura identidade levou até lá aventureiros de origens desvairadas: garimpeiros, geógrafos, botânicos, geólogos, exploradores de ambições plurais. E toda esta casta de gente estava disposta a perder a própria alma, desde que ali ganhasse a descoberta do que, até então, se esquivava à dádiva do exposto e do entregue Primeiro, foi o susto de irromper em clareiras inesperadas, como se do chão se desprendesse o aroma activo da rejeição e da iminência das feras. Depois sobreveio o apelo à intrepidez individual, ao desafio lançado aos próprios limites da integridade. Tudo isto era relativamente antigo – mas também relativamente politizado, pois que a Europa já há muito havia ultrapassado a casta idade da inocência … Aos jornais e revistas de referência da Grã-Bretanha começaram a chegar, entre 1840 e 1873, as narrativas circunstanciadas das deambulações do missionário inglês David Livingstone, que fizera o reconhecimento do rio Zambeze, da lago Niassa, dos territórios do Tanganica e que se abalançara a demandar as nascentes do Congo. Em 1867, inesperadamente, a Europa foi informada de que a região de Kimberley, no meridião africano, se fazia notar pela descoberta das suas imensas jazidas diamantíferas. Os testemunhos vertidos em ouvidos profanos pelo boca-a-boca dos intrépidos regressados, somados às novidades que se foram escrevendo em revistas universitárias ou de simples divulgação, contribuíram para a lenta mudança da imagem do continente africano. A África deixou de ser identificada com o exótico continente dos miasmas doentios, com o ninho da fauna desconhecida e potencialmente perigosa, com o azulejo pitoresco de etnias locais extravagantes. Passou a ser vista, pelo contrário, como o equivalente da Terra Prometida, pronta a resgatar a angústia recessiva e paralisada do modo europeu de produção capitalista.

E Portugal? Qual era a sua resposta às novas condições e apetites da vocação colonialista? O país herdara do passado a “doutrina do pacto ou sistema colonial”. Tal doutrina era praticada por todas as potências colonialistas ou colonizadoras do tempo. Reservava-se para as metrópoles, nos seus termos, o exclusivo da transformação das matérias-primas coloniais. Isto significava que as colónias não poderiam proceder à sua industrialização, transformando os próprios recursos. Esse benefício ficava reservado, em exclusivo, para as metrópoles. A vocação da economia autóctone ficaria prisioneira de uma recolecção puramente agrária. Mas a verdade é que Portugal revogara em 1808, de forma explícita, esta doutrina. A transferência da Corte para o Rio de Janeiro, sob o pavor da invasão do exército de Junot, na primeira acometida francesa, saldara-se por uma abertura dos portos brasileiros ao comércio internacional. Se antes as frotas mercantes oriundas do estrangeiro tinham obrigatoriamente de aportar a Lisboa, para aí realizarem as suas cargas e descargas, a partir de então passaram a rumar aos portos brasileiros, concluindo aí os seus negócios. Esta subalternização metropolitana agravara-se em 1811, quando se franquearam todos os portos ultramarinos ao comércio internacional. Porém, as sucessivas governações portuguesas não fomentaram a fixação de contingentes demográficos lusos no interior das possessões coloniais. A revolução de Setembro de 1836, através de Sá da Bandeira, procurou definir as regras gerais de um futuro regime de ocupação. Mas o setembrismo foi um fogo-fátuo. E tudo continuou entregue ao santo remanso da sonolência. Pois não é espantoso que um país de tradição colonialista, iniciada nos finais do século XV, só em 1875 tenha criado, em Lisboa, a sua Sociedade de Geografia?

Portugal secundou como pôde a “corrida a África” que as restantes potências europeias desencadearam, logo que se aperceberam do manancial de riquezas que o continente negro albergava no seu seio. Mas podia menos do que qualquer uma das restantes. Por isso, o nosso imperialismo quase não merece tal nome. Toda a tradição lusitana de transferência de contingentes demográficos se fazia através da travessia do Atlântico, fixando-se no Brasil, em termos permanentes ou episódicos. E, por outro lado, as finanças públicas permaneciam, como sempre, anémicas e desequilibradas. Era impossível, porém, ignorar o desafio. Por isso, a Sociedade de Geografia, sob o comando de Luciano Cordeiro, irá organizar as expedições ultramarinas de Serpa Pinto, Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens, entre 1877 e 1878. A expedição de Serpa Pinto teve o condão de demonstrar que entre Angola e Moçambique existiam linhas de continuidade que possibilitavam sonhos de ampliação territorial. Com base nisto iria nascer um sonho cor-de-rosa. Na altura ninguém poderia saber que esse sonho viria a transformar-se num dos nossos mais angustiantes pesadelos.

Publicado por Amadeu Carvalho Homem

Memorial Republicano XVI

Génese do imperialismo europeu

A génese do imperialismo europeu marcou profundamente a propaganda republicana. É indispensável que se compreendam as motivações de uma Europa em crise de crescimento industrial. Evite-se, acima de tudo, a leitura preconceituosa ou anacrónica do expansionismo colonialista. O Antigo Regime só foi vencido porque os estratos burgueses ascendentes, medindo as forças próprias e as alheias, decidiram que era chegado o momento de render a coligação aristocrático-clerical no varandim da hegemonia social. Isto foi acompanhado de uma nova forma de produção de bens materiais que contrariou a lógica agrária e substituiu o artesanato tradicional pela manufactura, primeiro, e pela imaginosa generalização da maquinaria industrial, logo de seguida. Esta industrialização era inevitável – e é isto que as diversas cartilhas do mecanicismo histórico se recusam a entender. A população europeia crescia sem retorno desde os meados do século XVIII. Se os mesteirais da Idade Média, com o seu culto canónico da obra-prima e a sua correlativa lentidão laboral, podiam corresponder às exigências de vida de populações estacionárias ou até regressivas (lembremos a calamidade da peste negra), o seu ritmo produtivo era impotente para satisfazer as necessidades de vastas massas populacionais, com mais dilatadas e sustentadas esperanças de vida. Se a industrialização foi o patamar burguês de uma inovadora iniciativa económica, ela não deixou de ser também – e talvez sobretudo – a única possibilidade que se colocava ao sistema produtivo para alimentar, vestir e calçar uma cada vez mais incontável legião de carenciados (hoje chamamos-lhes consumidores). A Europa desenvolveu o seu potencial mecânico até ao nível da saturação. Queremos com isto dizer que a produção industrial, impulsionada pelo incentivo do lucro e pela justificação da utilidade real, haveria de reconhecer o momento em que só o primeiro subsistia e em que o segundo se evolara. A fábrica, em sentido genérico, inundara o mercado tão copiosamente que este deixaria de comprar as suas mercadorias. O problema que então se colocou foi este: como continuar a manter os níveis económicos e as expectações dos seus agentes?

A Europa olhou então, uma vez mais, desde o tempo das grandes descobertas marítimas, para além de si mesma. Excedentária em mão de obra e em produtos acabados, traçou a estratégia de exportar para mundos desertificados ou semi-vazios o que nela própria se revelava sobrante. As duas Américas, as ignotas paragens da Austrália e da Nova Zelândia, assim como a enigmática África, poderiam ser a alternativa de escoamento das gentes sem trabalho e das mercadorias por vender. Foi assim que nasceram outras civilizações industriais, geograficamente muito remotas da matriz europeia, mas incontestavelmente marcadas pelas suas virtudes e estigmas.

Desde a primeira descoberta do seu imenso perfil, a África foi pouco mais do que uma promessa adiada. Os colonizadores primitivos – espanhóis, britânicos, holandeses, portugueses – assumiram perante ela uma postura de desconfiança. Terra de escuridões pigmentares, de palustres sezões, de orografias e hidrografias simplesmente supostas, a África era demandada por uma navegação de cabotagem, sem a pretensão de lhe explorar a interioridade e de lhe desvelar os íntimos mistérios. Trocava-se, junto à costa, o marfim dos elefantes por panos coloridos ou por garrafas de aguardente. O café em grão era descarregado nos porões por negros violentados pelo jugo do soba ou pela brutalidade do mareante cúpido. Esses carregadores não raramente foram associados à própria carga como escravos, sem que lhes fosse respeitado o querer ou salvaguardado o arbítrio. Portugal não diferiu deste modelo. A África começou por ser, para os nossos, apenas uma costa, uma fímbria de areia ou uma escarpa mais agreste, onde os nautas marcavam a sua passagem através das inscrições de Ielala ou dos padrões encimados pela cruz de Cristo – de um Cristo indiferente, afinal, à sorte dos gentios acorrentados. Mas a imagem africana iria mudar significativamente a partir de cerca de 1870. Passou a ser mais amada pelos que aí aportaram? Não. Passou simplesmente a ser mais cobiçada por aqueles que a viriam, pouco depois, a violar selvaticamente, em nome do que chamavam … Civilização.

Publicado por Amadeu Carvalho Homem

Memorial Republicano XV

Rodrigues de Freitas, primeiro deputado da República

Homem franzino, de estatura meã, com um rosto em que se distinguia uma testa alta, uns olhos bem rasgados, perscrutadores, e um farto bigode romântico, de longas guias, extravasando as comissuras da boca, assim foi fisicamente José Joaquim Rodrigues de Freitas, o primeiro deputado republicano que se fez escutar em plena Câmara Baixa da monarquia constitucional portuguesa. Homem do Porto, tão profunda e afectivamente identificado com o pulsar da sua cidade que todos o designavam por Freitinhas, símbolo de honradez, rectidão e desinteresse no serviço de representação em que se viu investido, Rodrigues de Freitas foi uma espécie de Galaaz idealista e generoso. Chegou à convicção republicana através da percepção autêntica da sua bela alma de patriota. Militou durante anos no seio do Partido Histórico, que afivelara a pretensão, em certo momento, de representar a tendência mais inovadora do liberalismo monárquico. A prova dos factos, a lenta necrose do tecido social e a análise dos comportamentos das figuras do Poder levou-o a dissentir da peleja que travava. Não o fez, porém, sem aviso prévio. Por isso o veremos, altaneiro na sua caracterial humildade, a proferir em plena Câmara dos Deputados, em 1874, um discurso memorável, no qual sustentou a superioridade do regime republicano sobre o monárquico.

Tirara um curso brilhantíssimo, de engenharia de pontes e estradas, na Academia Politécnica do Porto. Aí coleccionou uma tal profusão de prémios académicos, que logo então se desenhou o seu futuro de pedagogo e lente da mesma escola. Interessou-se também pela Ciência Política e pela Economia, escrevendo todo um conjunto de bem fundadas considerações sobre estes objectos da sua curiosidade intelectual. Assim surgiram obras como as Breves reflexões sobre a questão bancária (1864) e a Crise monetária e política de 1876 – causas e remédios. Mas foi nos discursos parlamentares que deixou o selo mais evidente da sua competência e seriedade. Eram alocuções muito moderadas, embora inflexivelmente denunciadoras dos malefícios causados ao país. E eram também peças que mantinham afinidades com a mentalidade científica, tanto pelo seu cuidado demonstrativo como por certo escrúpulo de rejeição para com a retórica empolada e o verbalismo estéril. Foi assim que Rodrigues de Freitas ganhou o respeito e a estima dos próprios adversários políticos.

O primeiro deputado republicano da história portuguesa candidatou-se pelo Porto, nas eleições de Outubro de 1878, e, embora tivesse havido outras candidaturas da mesma área ideológica, só ele acabaria por ser eleito. Nesta disputa, o governo, procurando simular algum pluralismo, patrocinara discretamente em Lisboa a candidatura republicana de José Elias Garcia. O único resultado visível que tal expediente alcançou foi o da cisão que desde logo se tornou explícita no interior do Centro Republicano Democrático de Lisboa, através da demarcação indignada de personalidades que interpretaram este patrocínio governamental como uma intolerável intromissão e uma vergonhosa cedência. Os dois restantes candidatos republicanos – Teófilo Braga pelo círculo 94 e Manuel de Arriaga pelo círculo 96 – não obtiveram sufrágios suficientes para a eleição.

O terceiro quartel do século XIX trouxera ao país um arejo de modernização evidente, mas alcançada através do crescimento da dívida externa. Ultrapassadas as convulsões internacionais de 1870 e de 1871, a Europa entrara em bonançoso pousio, seguindo-lhe Portugal o exemplo. Este abrandamento de tensões traduziu-se, entre nós, por um clima de tolerância em relação às organizações e instituições de oposição. Por isso, Rodrigues de Freitas não deixou de saudar, num dos seus discursos, o bom senso e o espírito de tolerância com que as regiões do Poder tratavam os centros republicanos. Por outro lado, este clima de franco pacifismo não apenas convinha a um movimento republicano que apenas ganhava expressão nas grandes cidades, como ainda coincidia com o significado do historicismo positivista. Os adeptos do positivismo entendiam que o desenvolvimento histórico transitava necessariamente por estádios de evolução que haveriam de transportar as colectividades das iniciais instituições “teocráticas” às finais instituições “científicas”, através da mediação intermédia e provisória das instituições liberais, tidas como “metafísicas”. Assim sendo, não subsistiam razões para estratégias de revolução ou de confronto. Tudo se jogava no campo da conversão pedagógica das mentalidades. O bom republicano teria apenas de difundir aos ignaros a sua Verdade, aguardando tranquilamente que o Tempo cumprisse a sua promessa, fazendo cair na mão expectante dos republicanos o fruto, finalmente maduro, da República sonhada. José Joaquim Rodrigues de Freitas foi o exemplo mais acabado desta leitura da realidade. Conciliador mas também firme, dialogante mas também afirmativo, justo, impoluto e humanista, ele foi decerto o grão-paladino dessa Távola Redonda republicana, vivendo ainda o sonho ingénuo dos começos.

Publicado por Amadeu Carvalho Homem

Memorial Republicano XIV

(Augusto Comte, fundador da filosofia positivista)

O Positivismo, Filosofia do Republicanismo

A geração republicana que desenvolveu entre nós a sua propaganda, entre 1870 e 1890, reclamou-se adepta da corrente filosófica do positivismo. Esta filosofia, concebida e fundamentada especialmente por dois estudiosos franceses, Augusto Comte e Emílio Littré, difundiu-se com celeridade na Europa, a partir dos meados do século XIX. Correspondia ela ao acelerado desenvolvimento das “ciências de rigor”, desde a Física à Biologia, desde a Química à Medicina. O positivismo valorizava um saber construído sobre os dados dos sentidos, desconfiava das grandes hipóteses teóricas não verificadas e pretendia introduzir na gestão e administração da sociedade um conjunto de processos de investigação e análise tão exactos como os que haviam permitido, até então, o espantoso progresso dos conhecimentos científicos e das correspondentes aplicações técnicas.

Poderia a evolução histórica revelar as suas leis e princípios determinativos? A sucessão dos regimes político-sociais obedeceria a implacáveis e ignorados processos de sucessão? Estariam as colectividades sujeitas a ritmos de desenvolvimento que pudessem ser previsíveis e facilmente diagnosticáveis? Existiriam instituições, poderes, tipos de comando e modalidades de hierarquia cuja vigência pudesse ser exclusivamente reportada a fases históricas características, entrando em agonia a partir do momento em que o tempo desvanecesse a sua temporal justificação? Entre todas as particularizações do positivismo, uma houve que fascinou verdadeiramente os nossos militantes republicanos, sobretudo os que se manifestaram antes do Ultimato inglês. Homens como Júlio de Matos, Teófilo Braga, Alexandre da Conceição, Alves da Veiga, Consiglieri Pedroso, Sebastião de Magalhães Lima ou Ramalho Ortigão (o Ramalho dos inícios dos anos 80 e não aquele que haveria de abjurar, mais tarde, do republicanismo programático), acreditaram que Augusto Comte descobrira a verdadeira e única lei do desenvolvimento social. A “lei dos três estados” não se limitava a aparecer como uma entre várias abordagens da historicidade, como uma entre diversas filosofias da história. Esta plêiade aceitou que o melhor do conhecimento sociológico repousava nessa explicação normativa que ilustrava a passagem das teocracias aos regimes demo-liberais e destes aos futuros e definitivos regimes “científicos”.

Galileu descobrira as leis do movimento dos corpos físicos em queda livre? Decerto. Mas também Comte desvelara as leis da mutação social, agindo invariavelmente em todos os quadros históricos, caracterizadores da “marcha das civilizações”. Comte era o Galileu dos movimentos colectivos, aplicando o seu pragmatismo demonstrativo ao último continente condenado até então a uma espécie de virgindade cognitiva: o continente dos fenómenos sociais. Assim, haveria uma relação de íntima correspondência entre os estados mentais do Grande Ser colectivo, da Sociedade naturalizada, e os estados institucionais que o exprimiam inevitável e necessariamente. No estado mental teológico, cuja capacidade interpretativa dos fenómenos remetia, em última análise, para a intromissão do Divino, as instituições não poderiam ser senão as da Teocracia, com a sua sacralidade do Poder e a sua hierarquia rígida. Mas as filosofias do século XVIII haviam desmantelado o dogmatismo religioso, impelindo as colectividades para as diversas formas de explicação individual, de natureza metafísica. Ora, este individualismo só poderia exprimir-se politicamente através de “regimes de opinião”, liberais-democráticos, agindo através do sufragismo e da vontade maioritária. Porém, este resultado histórico não era o definitivo. Ele só chegaria com a universalização da mentalidade científica e com a organização do que Comte designou por Estado Normal. Esta sociedade seria forçosamente agnóstica, por se ter libertado de todas as formas de teologia; e seria também obrigatoriamente republicana, por se entender que a monarquia era a abusiva irrupção do teologismo no plano de um tempo que já havia superado o poder régio, esse poder discricionário, arbitrário, de um sobre todos. Nenhuma demonstração poderia fazer-se a favor da monarquia, ainda que esta pudesse ser constitucional, uma vez que ela era a expressão completa do anacronismo.

Uma sociedade “sem Deus nem Rei” – eis a fórmula do comtismo político, prontamente adoptada pela geração republicana portuguesa anterior ao Ultimato de 1890.

Publicado por Amadeu Carvalho Homem

quarta-feira, 24 de março de 2010

Republicanismo e República III

Como vimos anteriormente, João Franco, enredado nas suas próprias ambições, caíra entretanto numa situação de proscrição política. Todavia, em 1907, aparece-nos o mesmo João Franco investido das mais altas funções governativas e exercendo-as em ditadura? A verdade é que ele chegara de novo ao poder e, desta feita, na qualidade de Chefe de Governo. Aparentemente, o impossível acontecera! Um olhar mais atento permite, no entanto, considerar que tal situação não era, de todo, impossível. O próprio Franco entrevira essa possibilidade e já em 1897, após a queda do ministério regenerador liderado pela dupla Hintze Ribeiro -João Franco, houvera feito ao então seu correligionário, José de Azevedo Castelo Branco, a confidência seguinte: “Agora só me tornas a ver subir estas escadas como Presidente do Conselho”. Bravata inteira ou meia bravata, o facto é que o futuro viria a dar plena consistência àquelas palavras, conduzindo efectivamente João Franco ao cargo que, declaradamente, ambicionava.

Detenhamo-nos um pouco nas circunstâncias que permitiram que tal acontecesse, lembrando que deixámos João Franco a braços com a sua hercúlea tarefa de deitar abaixo o rotativismo e as personalidades e grupos políticos que o sustentavam. Diga-se, em abono da verdade, que não se saiu muito mal dessa empreitada, se bem que, para tanto, tivesse nos próprios rotativistas e nos seus erros os seus maiores aliados. Na base de uma retórica de oposição promoveu uma intensa e bem conseguida campanha de propaganda, a qual gerou um notável movimento de opinião que o colocava a ele, João Franco, como alternativa válida e única, dentro do campo monárquico, aos partidos tradicionais e, nesse sentido, como político sério, capaz de levar a efeito as reformas de que o país tanto carecia. E sendo estas reformas vitais para o país, eram-no também para a monarquia, visto que a sua ausência ou demora aproximava ainda mais o perigo de uma revolução republicana. Constituindo tal facto uma constante preocupação para a Coroa, não é de estranhar que em 1906, D. Carlos, a braços com mais uma crise governamental, tivesse encarregado Franco de constituir governo. E isso porque, na sequência do debate e discussões na Câmara sobre a já referida Questão dos Tabacos, o Parlamento encerrou

para reabrir em Fevereiro de 1906, de novo com sessões assanhadas e tumultuosas. Sentindo-se sem condições para levar por diante uma governação, José Luciano de Castro pediu ao rei a dissolução das Cortes, no que, foi atendido. Formou-se então um governo regenerador sob a presidência de Hintze Ribeiro. Realizadas, a 29 de Abril, eleições para sustentação deste ministério, delas resultou um parlamento com uma composição curiosa, quer em número, quer em diversidade: 107 deputados regeneradores, 17 progressistas, nove dissidentes, sete franquistas, seis nacionalistas, dois independentes, um miguelista e um republicano. Um primeiro olhar logo trazia à evidência uma desproporcionada aproximação entre dissidentes progressistas e progressistas lucianistas, nisso se adivinhando o dedo manipulador de Hintze, facto que, no clima de encarniçamento político vivido pelos dois chefes rotativistas, iria, necessariamente, provocar retaliações da parte de José Luciano.

Um outro aspecto ressaltava ainda dos resultados destas eleições. É que, se bem que maioritário na capital, o Partido Republicano, tendo em conta a sua fraca penetração no meio rural e os condicionalismos das leis eleitorais (ignóbil porcaria), não teria, em boa verdade, votos suficientes para eleger um deputado. Aconteceu porém que Hintze, tentando comprar a boa vontade ou a quietude dos republicanos, mandou «chapelar» as eleições na Azambuja a favor do candidato republicano Bernardino Machado. Tal revelou-se um tremendo erro, dado que, fazendo um hábil aproveitamento da fraqueza de Hintze, as hostes republicanas rejeitaram, com grande alarido, tal "favor", vindo Bernardino a público recusar a sua própria eleição. À sua chegada a Lisboa, na noite de quatro de Maio, esperavam-no, na estação do Rossio, Afonso Costa e outros correligionários, bem assim como grosso número de populares. Aí se gerou então uma ruidosa manifestação que provocou violenta e desmesurada intervenção das forças policiais. Dias depois, durante uma tourada no Campo Pequeno, os espectadores aplaudiam estrepitosamente Afonso Costa, ignorando, em simultâneo, a presença da família real.

Publicado por Fernando Fava

Memorial Republicano XIII

Ironia dum sonho régio

(A Academia Real das Ciências forneceu as primeiras instalações ao Curso Superior de Letras)

Os portugueses foram surpreendidos, em 30 de Outubro de 1858, por um singular decreto, directamente emanado da Casa Real. Por ele, o rei D. Pedro V afectava trinta contos de réis da sua dotação constitucional para que, com os juros daí resultantes, se pudessem fazer funcionar em Lisboa cursos públicos de História, Literatura Antiga e Literatura Moderna, contemplando esta última, sobretudo, a criatividade literária portuguesa. Desejava o monarca lançar os alicerces de uma Faculdade de Letras, por entender (e bem) que os estudos da velha Universidade de Coimbra se encontravam mais voltados para a Teologia do que para uma cultura humanística vanguardista, próxima dos anseios da época. Amigo de Alexandre Herculano, que lhe incutira o gosto pelos conhecimentos históricos, educado por António José Viale, que o iniciara nas literaturas greco-latinas, espírito curioso e em contacto com os mais avançados países europeus, D. Pedro V constituiu um caso muito peculiar e positivo na galeria da dinastia de Bragança.

Ao fundar o Curso Superior de Letras, o jovem rei aspirava aos benefícios de um saber avançado, capaz de fomentar ou refundar um requinte filosófico, moral e estético que os seus avoengos não tinham proporcionado ao país. Os primeiros convites para o professorado obedeceram às preferências do rei-instituidor, o que se compreende sem esforço. Alexandre Herculano foi instado para a História, mas recusou polidamente. As literaturas clássicas ficaram entregues a António José Viale, que seria, além disso, o primeiro director do Curso. António Feliciano de Castilho foi sondado para as literaturas modernas e considerou-se incompetente para a tarefa, sugerindo o nome de Latino Coelho. Mas este navegava pelas águas do republicanismo e o preferido acabou por ser António Pedro Lopes de Mendonça, autor de um livro premonitório, intitulado Memórias de um Doido. A verdade é que a loucura, de facto, o acometeu, impedindo-o de assumir tais funções.

A curiosidade da evolução pedagógica e institucional do Curso Superior de Letras está em que essa nota de avanço cultural e de vanguarda cognitiva, desejada por D. Pedro V, lhe será conferida por personalidades em estado mental de ruptura com as instituições monárquicas. A regência provisória da cadeira de Literaturas Modernas foi parar às mãos de Augusto Soromenho, que não se identificava com o regime então vigente. Foi ele que incitou Teófilo Braga a concorrer à vaga da disciplina por si deixada, ao transferir-se para a docência da História Universal e Pátria, que ficara deserta devido ao falecimento de Rebelo da Silva. O concurso de 1872, ao qual se apresentaram dois candidatos claramente apoiados pela Monarquia (Manuel Pinheiro Chagas e Luciano Cordeiro) e um notoriamente afecto ao republicanismo (Teófilo Braga), saldou-se por um êxito inesperado mas justíssimo do candidato dissidente. A Teófilo e Soromenho veio juntar-se, em 1878, Adolfo Coelho, um dos antigos oradores das Conferências Democráticas do Casino, onde criticara acerbamente o sistema ultrapassado, monástico e acrítico do ensino público em vigor. Logo no ano seguinte, em exposição fundamentada dirigida ao Conselho do Curso e às tutelas oficiais, Teófilo Braga, agora apoiado por Vasconcelos Abreu, apresentou a sua proposta de converter o Curso Superior de Letras numa verdadeira Faculdade Sociológica. Era um ponto de vista muito aliciante, atendendo ao facto da Sociologia viver uma fase de maré alta no seio de muitas instituições europeias de ensino. Mas esta disciplina fora criada pelo génio de Augusto Comte e pelo talento sistematizador de Emílio Littré. O positivismo era encarado, entre nós, como uma ameaça à hegemonia monárquica. Foi por isso que tal proposta não vingou, mesmo depois de reiterada e mais solidamente fundamentada em 1899.

A dobragem do século XIX para o século XX foi feita dramaticamente entre nós. Nunca talvez a palavra “crise” tenha sido usada com mais propriedade: crise financeira, crise cultural, crise institucional, crise de desemprego e fome, crise colonial, crise de existência e de consciência, crise de valores e de valias. D. Pedro V, que o próprio Teófilo saudou como um “rei de boa vontade”, era só um espectro, uma miragem de além-túmulo. Morrera cedo e mal, ceifado por uma moléstia pandémica. Mas se a tensão das vontades e a persistência dos ideais não são dissolvidas pelas Parcas, o generoso monarca, que dera mostras, em vida, de algum sentido de humor, talvez tivesse sorrido quando a República, acabada de fundar, decretou, em 9 de Maio de 1911, a criação da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Herdeira directa do Curso Superior de Letras, ela realizava, finalmente, o sonho do defunto monarca.

Publicado por Amadeu Carvalho Homem